domingo, 19 de dezembro de 2010

103 frases de Oscar Wilde

Descaradamente copiado do blog A Caixa do Tee.


Oscar Wilde, 1854 - 1900


1. É absurdo que alguém tenha uma regra rígida e imutável para aquilo que deve ou não deve ler. Mais da metade da cultura moderna depende daquilo que a pessoa não deveria ler.
2. Segundo alguns, as mulheres amam com os ouvidos, exatamente como os homens amam com os olhos. Admitindo-se que realmente amem.
3. A beleza é a única coisa contra a qual a força do tempo é vã. As filosofias se desmancham como areia, as crenças sucedem-se uma após a outra, mas o que é belo é uma alegria para qualquer época, e é algo que pertence à toda a humanidade para sempre.
4. As perguntas nunca são indiscretas; as respostas, às vezes, podem sê-lo.
5. A única coisa de que podemos ter certeza acerca da natureza humana é que ela muda.
6. Todo o mundo sabe compadecer o sofrimento de um amigo, mas é preciso ter uma alma realmente bonita para se apreciar o sucesso de um amigo.
7. O egoísmo não consiste em vivermos conforme os nossos desejos, mas sim em exigirmos que os outros vivam da forma que nós gostaríamos. O altruísmo consiste em deixarmos todo o mundo viver do jeito que bem quiser.
8. Um homem que não tem pensamentos individuais é um homem que não pensa.
9. Aquele que se mantém o mais longe possível de seu século é na verdade o que melhor o espelha.
10. As piores coisas sempre são feitas com as melhores intenções.
11. A base lógica do casamento é o recíproco mal-entendido.
12. Neste mundo só há duas tragédias. Uma é não ter o que se deseja, a outra é consegui-lo.
13. Para qualquer um que conheça a história, a desobediência é a virtude original do homem. É com a desobediência que se realizou o progresso.
14. O fato de um homem imolar-se por uma idéia não prova de forma alguma que ela seja verdadeira.
15. Experiência é o nome que todos dão aos seus próprios erros.
16. Cada efeito bonito que produzimos nos cria um inimigo; para ser popular, a pessoa precisa ser uma mediocridade.
17. Todas as pessoas fascinantes têm vícios: está aí o segredo de sua fascinação.
18. Em prol da estupidez há muito mais a dizer do que normalmente se pensa. Pessoalmente, tenho a maior admiração pela estupidez. Quem sabe seja por algum tipo de solidariedade.
19. Todos os homens são monstros. Nada pode ser feito a respeito, a não ser alimentá-los direito. Um bom cozinheiro pode fazer milagres.
20. Sempre vale a pena fazer uma pergunta, mas nem sempre vale a pena dar uma resposta.
21. Uma obra de arte é bela na medida em que é aquilo que a arte ainda não chegou a ser; querer medi-la com os critérios do passado seria como medi-la segundo uma regra tanto mais negativa quanto mais perfeita.
22. Há três tipos de déspotas. O déspota que brutaliza o corpo. O déspota que brutaliza a alma. O déspota que brutaliza o corpo e a alma. Ao primeiro dá-se o nome de príncipe. Ao segundo de papa. O terceiro é o povo.
23. A roupa é um produto, uma evolução, um indício importante, talvez o mais importante, dos costumes, dos hábitos e das maneiras de viver de cada século.
24. O amor é muito romântico mas não há nada de romântico ao se pedir a mão de uma jovem. Corre-se o risco de ela aceitar.
25. Sem dinheiro de nada adianta ser um rapaz simpático.
26. Enquanto a guerra continuar sendo considerada uma coisa má, nunca deixará de exercer um certo fascínio. Quando for considerada coisa vulgar, aí deixará de ser popular.
27. Cada um de nós passa a vida buscando o segredo dela. Pois bem, o segredo da vida é a arte.
28. A verdade não é propriamente o que contaríamos a uma boa, educada e fina mocinha.
29. Quando tocamos música boa, as pessoas não escutam. E quando tocamos música ruim as pessoas não falam.
30. É muito melhor aproveitar uma rosa do que examinar sua raiz no microscópio.
31. As mulheres feias são sempre ciumentas dos maridos; as bonitas nunca! Não têm tempo para isto. Estão ocupadas demais com o ciúme dos maridos das outras.
32. É absurdo classificar as pessoas como boas e más. Há pessoas agradáveis e pessoas maçantes.
33. As pessoas que amam a música são absurdamente irracionais. Gostariam que todos ficassem perfeitamente calados justamente quando gostaríamos de ser absolutamente surdos.
34. O único jeito de uma mulher reformar um homem é chateando-o até que ele perca qualquer interesse pela vida.
35. A obra de arte deve dominar o público. Não cabe ao público dominar a obra de arte.
36. Não podemos tornar as pessoas morais com uma lei do parlamento – e isto já é alguma coisa.
37. Desconfiem de uma mulher que confessa a sua verdadeira idade. Uma mulher que diz isto poderá dizer qualquer coisa.
38. Nada existe de mais irritante que a calma. Há alguma coisa totalmente brutal na tranqüilidade da maioria dos homens modernos.
39. As mulheres malvadas nos atormentam. As boas nos aborrecem.
40. Não acredito na existência de mulheres absolutamente puritanas. Acho que não há uma única mulher no mundo que não se sentiria lisonjeada ao ser cortejada.
41. A alma nasce velha e se torna jovem. Eis a comédia da vida. O corpo nasce jovem e se torna velho. Eis a tragédia da alma.
42. O passado não importa. O presente não importa. O que realmente interessa é o futuro. O passado é aquilo que os homens deveriam não ter sido. O presente é aquilo que eles não deveriam ser. O futuro será aquilo que os artistas são.
43. A vida é apenas um tempinho horroroso cheio de momentos deliciosos.
44. Quase dá vontade de definir o homem como sendo um ser racional que fica fulo de raiva toda vez que o forçam a agir segundo os ditames da razão.
45. Sempre percebemos alguma coisa ridícula nas emoções das pessoas que deixamos de amar.
46. Nesta nossa época a única coisa necessária é o supérfluo.
47. Na verdade, o homem não busca nem o prazer nem a dor, mas sim apenas a vida. O homem procura viver intensamente, completamente, perfeitamente. Quando conseguir fazer isto, sem lesar a liberdade alheia e sem nunca ser lesado, quando todas as suas atividades só lhe proporcionarem satisfação, ele será mais saudável, mais normal, mais civilizado, mais si mesmo. A felicidade é a medida pela qual o homem julga a natureza e avalia até que ponto está em harmonia consigo mesmo e com o ambiente.
48. Gosto dos homens com um futuro e das mulheres com um passado.
49. Segundo um ditado de um francês espirituoso, as mulheres inspiram-nos o desejo de criarmos obras-primas, e nunca nos deixam realizá-las.
50. Como definir uma mulher perversa? Ora, aquela de que a gente nunca se cansa!
51. Podemos resistir a tudo exceto às tentações.
52. Ser bom quer dizer estar em harmonia consigo mesmo. A discordância consiste em nos vermos forácos a estarmos em harmonia com os demais.
53. Receio que as pessoas de bem sejam a causa de infinitos males neste mundo. A pior coisa que fazem é certamente atribuir tamanha importância ao mal.
54. O Renascimento foi grande porque não procurou resolver algum problema social, e nem chegou a tratar de tais assuntos, mas permitiu que o indivído se desenvolvesse livremente, conforme a beleza e a natureza. Foi por isto que teve grandes artistas pessoais e grandes figuras pessoais.
55. Na Inglaterra as pessoas se esforçam para serem espirituosas no café da manhã. Isto é uma coisa francamente horrorosa. Só as pessoas enfadonhas podem ser espirituosas no café da manhã.
56. Uma idéia que não é perigosa não merece ser chamada de idéia.
57. Para conhecermos, mesmo superficialmente, a nós mesmos, precisamos conhecer profundamente os outros.
58. Depois de um bom jantar estamos dispostos a perdoar a todos, até aos nossos parentes.
59. Sempre falem com uma mulher como se estivessem apaixonados, e com um homem como se estivessem enfadados; no fim da temporada vocês terão certamente criado a fama de possuidores do mais requintado tato social.
60. Falar da própria ocupação é uma coisa muito vulgar. Só fazem isto os operadores da bolsa, e mesmo eles só durante o almoço.
61. Adoro as coisas simples. Elas são o último refúgio de um espírito complexo.
62. Todos nós estamos na lama, mas alguns sabem ver as estrelas.
63. Os homens sempre desejam ser o primeiro amor de uma mulher; este é um efeito de sua insensata vaidade. As mulheres têm um instinto mais sutil. Elas desejam ser o último amor de um homem.
64. Quando uma mulher percebe que já não é objeto das atenções do marido, ou se esquece de qualquer elegância, ou ostenta chapéus extremamente elegantes, pagos pelo marido de outra.
65. O homem se casa porque está cansado. A mulher porque está curiosa. Ambos ficam decepcionados.
66. O homem que se preocupa com seu passado não merece ter futuro.
67. Todas as mulheres tornam-se parecidas com as mães. É a tragédia delas. Isto não acontece com os homens. E aí está a tragédia deles.
68. As mulheres são um sexo fascinante e cabeçudo. Toda mulher é rebelde; por via de regra insurge violentamente contra si mesma.
69. O Estado deve fazer coisas úteis. O indivíduo, coisas bonitas.
70. Uma sociedade se embrutece muito mais inflingindo regularmente algum castigo que suportando de vez em quando algum crime.
71. O ciúme, que é uma das mais extraordinárias causas de crimes da vida moderna, é uma emoção intimamente ligada ao nosso conceito de posse, e que tanto no socialismo quanto no individualismo desaparecerá. É um fato incontestável que nas tribos de tipo comunista o ciúme é desconhecido.
72. A felicidade de um homem casado depende das mulheres com as quais não se casou.
73. O mundo foi feito por loucos para que os sábios nele pudessem viver.
74. As mulheres nos amam pelos nossos defeitos. Se tivermos um número suficiente deles, elas nos perdoarão tudo, até a nossa grande inteligência.
75. As circunstâncias são o acoite com que a vida nos fustiga. Alguns de nós o recebem diretamente na carne, outros por cima das roupas. Esta é a única diferença.
76. Qual a diferença entre jornalismo e literatura? O jornalismo é ilegível, a literatura não é lida.
77. A tragédia da velhice consiste não no fato de sermos velhos, mas sim no fato de nos sentirmos jovens.
78. Há muitas coisas das quais nos livraríamos com alegria se não houvesse outras pessoas dispostas a usá-las.
79. Por trás de toda coisa deliciosa há uma coisa trágica. Os mundos precisam sofrer muito para que uma flor desabroche.
80. Não há outro jeito de livrar-se de uma tentação a não ser sucumbindo a ela. Se você resistir, a sua alma adoecerá desejando aquelas coisas que lhe foram recusadas.
81. Não podemos ser excessivamente cuidadosos ao escolher os nossos inimigos. Nenhum dos que tenho é um imbecil. São todos homens de algum valor intelectual e, por conseguinte, me apreciam.
82. Gosto mais das pessoas do que dos princípios; e gosto das pessoas desprovidas de princípios, mais que de qualquer outra coisa no mundo.
83. Para apreciarmos a qualidade de um vinho e sabermos de um safra foi feito, não precisamos tomar um tonel inteiro.
84. Nada existe mais bonito que esquecer, a não ser talvez ser esquecido.
85. Londres tem neblina e gente séria demais. Se é a neblina a criar gente séria ou se é a gente séria a criar neblina, isto não sei dizer.
86. Adoro os jantares em Londres. Os convidados inteligentes nunca escutam e os convidados estúpidos nunca conversam.
87. O segredo parece ser a única maneira de se tornar misteriosa e maravilhosa a vida moderna. A coisa mais banal adquire um toque fascinante quando for feita às escondidas.
88. O homem pode acreditar no impossível, mas nunca acreditará no improvável.
89. Os historiadores de antigamente nos apresentavam deliciosos romances na forma de história; os romancistas de hoje nos apresentam fatos tediosos na forma de romance.
90. Por via de regra, as autobiografias modernas são escritas por pessoas que perderam quase completamente a memória e que nunca fizeram coisa alguma digna de ser lembrada.
91. A instrução é uma coisa muito bonita, mas vale a pena lembrar de vez em quando, que nada daquilo que realmente interessa pode ser ensinado.
92. Toda vez que fazemos uma coisa realmente idiota somos movidos pelos motivos mais nobres.
93. Hoje em dia conhecemos o preço de tudo e o valor de nada.
94. De sobrecasaca e gravata branca, todos, até os operadores da bolsa, podem crar a fama de homens civilizados.
95. As boas intenções foram a ruína do mundo. Os únicos que fizeram alguma coisa foram aqueles que não tinham intenção alguma.
96. Quando os críticos não concordam, o artista é coerente consigo mesmo.
97. A fé é a coisa mais complexa que eu conheço. Supõe-se que acreditemos todos na mesma coisa de forma diferente. É como se estivéssemos comendo do mesmo prato com colheres de várias cores.
98. O conceito popular de saúde é extremamente nobre. Um cavalheiro inglês do interior cavalgando a galope atrás de uma raposa – o inominável perseguindo o incomível.
99. Não há livros morais e livros imorais. Há livros bem escrito e livros mal escritos. Só isto.
100. Os que encontram significados perverso nas coisas belas, são corruptos sem serem agradáveis.
101. Escolho os meus amigos pela beleza, os meus conhecidos pela respeitabilidade e meus inimigos pela inteligência.
102. Prefiro a música de Wagner a qualquer outra coisa. É tão barulhenta que a gente pode conversar durante a execução, sem que os outros posam ouvir o que estamos dizendo.
103. O eco é quase sempre mais lindo que a voz que ele repete.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

1822 (resenha)


 É maravilhoso descobrir, muito depois de abandonar os bancos escolares, a história da Independência do Brasil e do Primeiro Império. As personalidades vivas de D. Pedro I, José Bonifácio, Imperatriz Maria Leopoldina e de Thomas Cochrane, tão bem delineadas no livro, ajudam a dar cor e vida aos acontecimentos do século XIX dos dois lados do Atlântico. É impressionante o quão rico e interessante o país era e quão significativas foram as ações de tantos homens e mulheres durante esse período conturbado, repleto das dores do parto da Independência brasileira, que só foi alcançada, como sugere o título do livro, por um milagre (ainda que banhado em sangue, regado a ouro e abençoado por acordos e trocas de favores).

Além disso, o livro é uma ferramenta de descoberta dos ranços e avanços de um Brasil que carrega os mesmos problemas desde os tempos de colônia: povo pobre e ignorante, uma elite quase tão ignorante e repleta de vícios e falhas de caráter, desigualdades sociais, concentração de renda, intrigas tanto domésticas como em âmbito internacional, violência bárbara, impostos absurdos, dívida externa... A lista vai longe, mas a obra demonstra algo que infelizmente não temos hoje: O país nas mãos de um grupo de pessoas com amor patriótico e sincero desejo de tornar o Brasil uma nação maior e melhor.

Do mesmo autor de 1808 (que narra a fuga da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, em fuga do exército de Napoleão), o livro consegue não apenas ser informativo como também extremamente divertido, e o segredo, creio, está em colocar no centro do palco das mudanças as pessoas que coroaram a história brasileira com suas idéias e ações.

 
Laurentino Gomes, o autor

domingo, 19 de setembro de 2010

Navio Negreiro

O autor, Castro Alves

I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.


II


Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...


III


Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!


IV


Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...


V


Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...


VI


Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Criação (Filme)

O filme Creation, que conta a história da criação do livro A Origem das Espécies, de Charles Darwin, pode ser encontra no youtube, completo e legendado neste link. O filme, na verdade, se centra nos conflitos que acompanharam Darwin durante os anos de elaboração do livro. Excelente produção, ótimas atuações e informação salpicada de fantasia, o que não é de forma alguma um demérito.

Darwin (Paul Bettany) e sua esposa Emma (Jennifer Connelly)  

terça-feira, 7 de setembro de 2010

A Caixa

Ah, algo importante: a ilustração desse post é de autoria da Jazz. Visite o deviantart dela, tem muita coisa boa lá.

Bem, é isso. Espero que goste do conto :)

* * *
“E os dias da minha vida foram como a crina do cavalo trançada pelos ventos do destino”

Me criei na Babilônia, como meu pai e seu pai antes dele. Minha mãe era de terra estranha, onde os homens se amam e reservam às mulheres pouco interesse. Soube que meu pai a resgatara deste atoleiro de perversão e deuses estranhos e a transportara em segredo ao nosso lar, eu já em seu ventre. Sou, na verdade, filho do deserto, mas ao nascer meus olhos se voltaram para o Portal de Ishtar (o atravessei muito antes de Sikander), e não chorei.

Meu pai era um abastado mercador, nascido sob as graças de Asaru, e no entanto me fiz crescer nas ruas por vontade própria e nelas aprendi mais que na escola à qual era obrigado a comparecer. Meu pai não se dignou a domar meu espírito, ele próprio tomado por um espírito audacioso (Certa vez ele matara um mercador que julgava o estar enganando; mais tarde, descobriu que o homem era honesto e matou todos os empregados e escravos deste mercador, para que o segredo não se espalhasse. Ele agia segundo o seu coração, que estava nas mãos dos deuses, cuja sabedoria não discutirei).

Muito aprendi com meu pai até que um punhal em uma noite de verão o ceifou em um beco à saída do templo de Marduk. Naquele mesmo beco vinguei meu pai, e verifiquei que o punhal do assassino era patrocinado por um homem imune ao Código. Corri ao lar, tomando tudo que a meu pai pertencera e, junto de minha mãe, abandonei a cidade que amei mas que nunca fora minha. Tinha treze anos e por treze noites dormimos no deserto até alcançar a terra de minha mãe. Seus pais estavam mortos, aparentemente pelas próprias mãos, e não herdamos sua casa. Não precisamos, três camelos trazíamos conosco e eles carregavam riquezas suficientes para comprar toda aquela cidade vil, repleta de homens que pensavam demais.

Naquela terra à beira do mar escolhi um lar para minha mãe que, à vista de nossa riqueza, foi logo cortejada por homens. Ela não se interessou por nenhum deles mas, em vista de que em terra estranha precisaríamos de um homem na casa, escolheu um forasteiro (que seu nome se perca na noite e em Arallu) de maneiras sutis e olhar misterioso, de idade avançada e que não a perturbaria na cozinha ou no quarto: O estrangeiro nunca tomara para si mulher, embora tivesse idade para ter netos (típico deste lugar, pensei), e me tomou por filho, sob seu nome e herança. Mudamo-nos para sua casa, distante das outras muito mais que o normal, sem escravos ou serviçais. O homem tinha dinheiro, mas também muitos gastos; conforme se passavam os meses vi se esvaírem através de seus dedos a nossa riqueza, e em seus negócios se perdiam anos de trabalho de meu pai. A cada mês enviava homens para todas as direções daquela terra infértil e recebia de volta esses homens, muitas semanas depois, exaustos de longas viagens e desprovidos de mercadoria alguma, salvo um eventual livro, um fragmento de tecido, um caco de cerâmica.

Isso muito me interessou, e tencionei descobrir o segredo do meu novo pai. Sondei seus olhos e palavras, em vão. Escondido nas sombras, como aprendi nas ruas da Babilônia, me instruí sobre o homem e suas maneiras. Seu quarto e seu escritório me eram de fácil acesso. Esgueirando-me pelos corredores mal cuidados e mal iluminados, sob sua cama (na qual minha mãe nunca se deitara) , por trás de colunas e paredes secretas, em seu armário, pude ouvi-lo com seus mensageiros, li suas cartas, seus livros, ouvi seus suspiros em sono profundo, e assim aprendi sobre a Caixa.

Antes minha curiosidade não me tivesse conduzido a isso. Mas a vontade dos deuses é inescrutável. Maldito seja o dia no qual aprendi sobre a Caixa. Sem nome ou história, ela era objeto de poder. O homem encontrara referência em um livro obscuro, e depois novamente na língua de um mercador (que ele ainda guarda em um pote), na tapeçaria de um persa, nos ventos da noite, que ele consultava com freqüência. Dizia, em sono profundo, que a caixa o tornaria poderoso. Dizia, maravilhas em seu interior aguardavam o sábio, o ousado. Mais aprendi em seu diário, mas não convém falar.

Em uma noite de lua cheia, sob o olhar desatento de Nana (como podem os deuses permitir tais coisas?), o homem sacrificou minha mãe através de uma incisão que começou em seu ventre e terminou no pescoço; em silêncio, observei, sem luto (não ouse julgar meu coração). O homem leu em suas entranhas a história da caixa, que lhe era explicada por uma sombra que ele chamava Sagulhassa sobre sua cabeça. Nas sombras ouvi e não interrompi.

Na manhã seguinte meu padrasto apareceu em meu quarto, fingindo surpresa, me alertando sobre o rapto de minha mãe. Juntos fingimos lágrimas, fingimos surpresa ao encontrarmos o corpo dilacerado em uma praia, fingimos luto no enterro. Guardei em mim o segredo, e aos poucos me estreitei laços com o homem, cuidando de suas finanças e auxiliando no que podia. Depois de um mês ele decidiu viajar, e eu conhecia o motivo. Esperava que ele me permitisse partir com ele, mas fui designado como guardião da casa e da riqueza. Presenteei-lhe a honraria com um punhal no peito e tomei seu lugar na viagem.

Segui os desígnios do ventre de minha mãe, e partirmos para a morada noturna do sol, através de colinas e, depois, montanhas. Animais selvagens nos acompanhavam em nossa viagem, mas não se aproximavam. Chacais, hienas, ouvíamos seus sons à noite, entre outros, que na época não conhecia; os homens da caravana falavam de espíritos, gênios. Não lhes dei ouvidos e silenciei os mais barulhentos. Mas, a cada dia que nos aproximávamos mais do destino, as dificuldades aumentavam: fiéis não conseguiam dedicar palavras a seus deuses, sonhos incômodos não os permitiam dormir, água e pão perdiam o gosto. Um a um meus homens desapareciam. Certa manhã, encontrei-me só no deserto, com um camelo, um cantil e um bilhete. Continuei em direção ao oeste.

Sob o sol do meio dia avistei no horizonte uma jóia branca que, brilhando sob o sol e tanto quanto Utu, não pude admirar como queria. Ao anoitecer, alcancei a cidade, e novamente não pude contemplar suas formas, devido às sombras. Não fui recebido a não ser pelo vento, pelo eco e pelo cheiro de fezes e urina, de chacais e hienas, por toda a parte. Contei seus pilares por uma hora, e não fui capaz de terminar. Não encontrei um copo que não fosse de ouro, não encontrei uma alma com que partilhar o vinho. Decidi que era uma cidade morta, e não dos mortos. No entanto, ela me era familiar, como se a conhecesse de um sonho, ou de outra vida. Na área mais central encontrei um templo, não como os da minha terra ou como os da de minha mãe. Suas paredes eram limpas, sem arte de qualquer tipo a não ser uma inscrição em língua estranha que não fui capaz de ler. Sem medo, adentrei.

Não haviam cômodos no templo, apenas um amplo salão. Em cada parede, estantes e livros. No centro, uma fonte, ainda com água; em seu interior, rãs, sapos, insetos. Examinei os tomos e encontrei volumes em várias línguas: grego, acádio, persa, elamita e outras que não conhecia ou sequer pareciam possíveis. Em um livro encadernado em couro vermelho aprendi que “o solo da Floresta Negra é tão absurdamente negro que o risco de se cair em um buraco acreditando-se estar sobre solo firme é bastante comum” e, em outro, adornado com dentes e com cheiro de urina li que “Em Antípodi é costume do pai, em caso de nascimento de gêmeos, devorar o filho mais novo evitando-se, assim, discussões sobre primogenitura ”. Encontrei a inscrição da entrada do templo na capa de um grande livro encadernado em ouro e adornado com jóias em cada página - suas páginas eram de prata maciça e seu conteúdo escrito em ouro; seu conteúdo era misterioso para mim. Deitei-me e, com o livro sob minha cabeça, adormeci.

Sonhei.

Caminhava no deserto. Era noite e a lua de prata e, sob meus pés, a areia de ouro reluzia. Uma figura se aproximava mais a cada instante. A alguns metros a luz da lua a se revelara sendo uma mulher bela, vestida com os trajes de minha terra, em suas mãos carregava uma bolsa e sobre ela uma inscrição, a mesma da entrada do templo. Seus olhos verdes repletos de ambição, enquanto me encaravam, se abriram em êxtase, suas pupilas se dilataram e então se apagaram. Ela caiu por terra, enquanto um homem, negro como a noite, se escondia em um beco da Babilônia. Abri o saco, e nele encontrei uma adaga, com a qual abri o ventre da mulher. Em seu bojo, a escuridão.

Acordei e me virei vendo, ainda sob o torpor do despertar, uma cobra morta, com marcas de mordida; em direção à porta, pegadas de chacal. Suava e tremia. Tentei decifrar o sonho e fui incapaz. Procurei pelo chacal, para perscrutar em suas entranhas meu destino, mas estava só. Ao anoitecer notei, na fronteira entre a cidade e o deserto, uma coluna fumaça. A segui, e, minutos depois chegava a uma pequena casa, diferente das demais da cidade, pouco mais que uma cabana. Entrei, e encontrei um homem sentado em uma cadeira; sem parecer surpresa se levantou e me olhou nos olhos. Ele me abraçou, sem proferir palavra, e se foi, montado em um cavalo. Em meu bolso, encontrei uma chave; levantei meus olhos, vi a caixa sobre um pedestal de madeira e me aproximei, sem tocá-la.

Ela era negra, como ébano, como a noite, como a chave. Retirei o artefato do meu bolso e examinei suas formas novamente. Era uma chave como qualquer outra, mas, negra como a caixa, parecia roubar a luz à sua volta. Por algum motivo, não imaginava aquele pedaço de metal (seria metal?) capaz de abrir qualquer coisa, como se não fosse uma chave, mas algo que se disfarçava nessa forma, como uma faca querendo ser espada ou um camelo querendo ser rei. Introduzi a chave na fechadura e a virei tantas vezes quanto pude, sem resultado. A cada vez que virava a chave na fechadura, ouvia um som, mas a caixa permanecia fechada. Tentei virar a chave mais algumas vezes, em várias direções. O esforço me tomou alguns minutos, mas o processo de destrancamento da caixa me iludia. Faltava algo.

Atentei para uma inscrição na caixa e notei que era a mesma do templo. A caixa, notei melhor, era muito parecida com o templo. Observei seus detalhes e toquei-lhe em cada ponto, buscando uma solução para aquele mistério, sem resultado. Procurei solução nas paredes à minha volta, mas também não encontrei nada que pudesse me ajudar. O guardião já deveria estar muito distante no deserto e eu não sabia onde estava meu camelo.

Depois de várias horas de decepção e inútil contemplação agarrei a caixa bruscamente e a levantei com ambas as mãos, com facilidade, e a balancei. Nenhum som. Sentindo-me enganado, lancei, com todas as forças, o artefato contra o chão, e ouvi o som de madeira se lascando ao mesmo tempo em que ouvi o som de madeira batendo ao chão e se rompendo. Ouvi, estranhamente, o som de aço sendo rasgado, de carne sendo cortada, do fluxo de um rio sendo rompido . Ouvi os gritos da minha mãe, quando nasci, e ouvi os meus. Ouvi ainda muitos outros sons, no que parecia ser a eternidade e um instante, enquanto a sala se iluminava cada vez mais, e tremia, como se o chão fosse se abrir sob minhas pernas. À porta, que vi pela última vez, estava o chacal, que olhava para mim e, posso jurar, haviam lágrimas em seus olhos. A luz tomou conta de tudo e, com ambas as mãos, tapava os ouvidos, inutilmente. Fechei os olhos e tudo se tornou silêncio. Quando os abri, o mundo não estava mais lá.

* * *

Por dentro, a caixa se parece ainda mais com o templo. Cheguei a essa conclusão depois de tocar cada centímetro de seu interior, ao longo dos anos. Não pela visão, não. É muito escuro aqui dentro. Não sei ao certo há quanto tempo estou aqui. Não defini nenhum método de medição dos dias, mas não me importo. Aqui os dias, meses, anos, fluem, como se não existissem. Arranquei e comi meus olhos há algum tempo atrás. Sei que foi há alguns anos, pois não sinto mais dor, nem me lembro do gosto. Não o fiz por fome, não sinto fome ou sede. Achei apenas um desperdício não fazê-lo. Dentro desse espaço não encontrei segredo ou poder. Sei que estou só, mas não acredito que será para sempre. Alguém, nos anos que virão, descobrirá em um livro uma menção a este lugar, e iniciará uma busca. Nos livros e nas estrelas perscrutará mistérios, iniciará uma busca, encontrará a casa e a chave, vislumbrará a caixa. Disso não duvido. Não duvido também que tentará abri-la. Se suceder, estarei livre. Se não, ao menos terei companhia.

domingo, 29 de agosto de 2010

For Whom the Bells Toll

No man is an Iland, intire of it selfe; every man is a peece of the Continent, a part of the maine; if a Clod bee washed away by the Sea, Europe is the lesse, as well as if a Promontorie were, as well as if a Mannor of thy friends or of thine owne were; any mans death diminishes me, because I am involved in Mankinde; And therefore never send to know for whom the bell tolls; It tolls for thee.

Do texto Devotions upon Emergent Occasions, de John Donne.



Música de Steve Baker e Carmen Daye, parte da trilha sonora de Donnie Darko

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Leão

Fui eu o leão que o forçou a encontrar-se com Aravis. Fui eu o gato que o consolou na casa dos mortos. Fui eu o leão que espantou os chacais para que você dormisse. Fui eu o leão que assustou os cavalos a fim de que chegassem a tempo de avisar o rei Luna. E fui eu o leão que empurrou para a praia a canoa em que você dormia, uma criança quase morta, para que um homem, acordado à meia-noite, o acolhesse.
- Então foi você quem machucou Aravis?
- Fui eu.
- Mas por quê?
- Filho! Estou contando a sua história, não a dela. A cada um só conto a história que lhe pertence.
- Quem é você?
- Eu mesmo - respondeu a voz, com uma entonação tão profunda que a terra estremeceu. E de novo: - Eu mesmo - com um murmúrio tão suave que mal se podia perceber, e parecia, no entanto, que esse murmúrio agitava toda a folhagem à volta.

Trecho de O cavalo e seu menino, terceiro livro d'As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Morrow

Behold, be told_
the tale of old.
Lies spread in time;
in truth, they die.
Lore and morrow:
fire’s out, burnt out;
eyes closed, Eve:
dreams wither,
hearts bitter; a new
_day

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Crepúsculo e Aurora após o fim da História

Os olhos dela se apagavam, acompanhando o pôr do sol. O cinza em torno da íris se tornava cada vez mais escuro e pálido, enquanto todo o resto parecia dizer adeus ao mundo apenas porque o dia terminava. Vi as formas de seu rosto desaparecerem perante mim, e guardei aquelas linhas por alguns instantes após o anoitecer, mas elas me fugiram, embora minha amada continuasse na mesma posição. Sentia ainda sua presença, seu cheiro, e essa percepção física me consolava do fato de sua mente estar, para mim, para sempre, fechada. Desejei mergulhar naqueles olhos e buscar aquilo que um dia tive (ou acreditei ter), mas não mais via as janelas, cuja cor eu sabia não ser cinza. Longe dos seus braços, recostado em uma árvore de casca áspera e incompreensiva, adormeci um sono rude e inconsistente. Não sonhei, ou não me lembrei. Quando acordei, alguns minutos depois, percebi, sem ver, que ela não estava mais lá. Esperei que meus olhos se acostumassem com a escuridão, e então notei que sob o céu de estrelas inclementes e sem lua o campo continuava o mesmo onde ela me disse coisas que jamais sairiam da minha memória. Levantei, cambaleei, segui meu caminho através da trilha lamacenta.

Em algum momento da noite sonhei. Revivi meses em horas, momentos bons e ruins, coisas que havia, acredite, esquecido. No sonho havia o terror de nada poder controlar, e imagino que de alguma forma deva ter percebido a semelhança com a vida. Sonhei com ela, comigo, com dias e noites e cheiros e cores e nomes e flores e ódios e dissabores e água e pele e calor e frio e acordei. Acordei com o sol batendo em meu rosto. Era o dia seguinte (assim dizia o jornal que tentei ler mais tarde) e eu preferia que não houvesse amanhecido. Me arrastei para além do lençol bagunçado, senti o frescor do chão ferir meus pés assim como a luz rasgava minhas córneas. Me dirigi ao banheiro como ao matadouro e me joguei embaixo da água fria do chuveiro, para depois perceber que ainda estava semi-vestido. "Meu Deus, preciso acordar", pensei. Me enxuguei, escovei os dentes mais por instinto que por vontade e me vesti com algo que imaginava apropriado. Acredito que comi algo. Deixei o carro na garagem e fui andando para o trabalho, desafiando o sol escaldante da manhã. A fumaça e barulho dos carros não me acordou; pelo contrário, parecia criar uma cortina que minha vontade desmanchava para revelar o espetáculo que havia revisto diversas vezes desde a noite anterior.

"Ela não vai voltar", dizia para mim mesmo, e os transeuntes acompanhavam meu martírio.


death in flowers, de *tonysandoval

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Primeira charada imperfeita

Quando sou dois sou menos que um.
Te aleijo, mas sou tua bengala.
Te desfiguro, mas defino quem és.

Quem sou eu?

quinta-feira, 10 de junho de 2010

A Criança Demônio

.
Sonhei que além do oceano havia um outro eu. Sua miséria, tal como a minha, preenchia entre nós a distância, a ser transporta por nossos sonhos, por tanto tempo negados. A criança demônio, em nós, à nossa volta, da fúria da esperança se alimentara e agora oferecia a dois desgraçados a benção da escolha. A ignorância de ambos nos conduzirá ao caminho sem volta da decisão, que sempre conduz à tragédia, ao inevitável fim da oportunidade e destruição de algo que poderia ser. Ela, dos meus sonhos, dará lugar a outra, talvez melhor, talvez não. Que meu outro faça a escolha certa, ainda que tolo como eu, que sua moeda lhe seja mais verdadeira que os labirintos de minha sorte. Assim sonhei, e acordei com os murmúrios da noite, o rosto lavado pela dor e, nas sombras, vi minha sorte distorcida fugir dos meus olhos.

 She maybe come from the sea, por *tonysandoval

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A Casa de Astérion

 .
E a rainha deu à luz um filho
Que se chamou Astérion.

APOLODORO: Biblioteca, III, I

Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Tais acusações (que castigarei ao seu devido tempo) são irrisórias. É verdade que não saio de minha casa, mas também é verdade que suas portas (cujo número é infinito) estão abertas dia e noite aos homens e também aos animais. Que entre quem quiser. Não encontrará aqui pompas feminis nem o bizarro aparato dos palácios, mas sim a quietude e a solidão. Assim, encontrará uma casa como não há outra na face da Terra. (Mentem os que declaram que no Egito existe uma parecida). Até meus detratores admitem que não há um só móvel na casa. Outra história ridícula é que eu, Astérion, sou um prisioneiro. Repetirei que não há uma porta fechada, acrescentarei que não há uma fechadura? Além disso, num entardecer pisei a rua; se antes da noite voltei, fiz isso pelo temor que me infundiram os rostos da plebe, rostos descoloridos e achatados, como a mão aberta. Já se havia posto o sol, mas o desvalido choro de uma criança e as toscas preces da grei disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, prosternava-se; alguns trepavam na estilóbata do templo dos Machados, outros juntavam pedras. Algum, creio, ocultou-se sob o mar. Não em vão foi uma rainha minha mãe; não posso confundir-me com o vulgo, ainda que minha modéstia o queira.

O Fato é que sou único. Não me interessa o que um homem possa transmitir a outros homens; como o filósofo, penso que nada é comunicável pela arte da escritura. As maçantes e triviais minúcias não têm espaço em meu espírito, que está capacitado para o grande; jamais reti a diferença entre uma letra e outra. Certa impaciência generosa não consentiu que eu aprendesse a ler. Às vezes o deploro, porque as noites e os dias são longos.

Claro que não me faltam distrações. Igual ao carneiro que vai investir, corro pelas galerias de pedra até rolar no chão, nauseado. Escondo-me à sombra de uma cisterna ou à volta de um corredor e finjo que me procuram. Existem terraços de onde me deixo cair até me ensangüentar. A qualquer hora posso fingir que estou adormecido, com os olhos fechados e a respiração poderosa. (Às vezes durmo realmente, às vezes está mudada a cor do dia quando abro os olhos.) Mas, de tantas brincadeiras, a que prefiro é a do outro Astérion. Finjo que vem visitar-me e que lhe mostro a casa. Com grandes reverências, digo-lhe: Agora voltamos à encruzilhada anterior ou Agora desembocamos em outro pátio ou Bem dizia eu que te agradaria o canalete ou Agora verás uma cisterna que se encheu de areia ou Já verás como o porão se bifurca. Às vezes me confundo e nos rimos agradavelmente os dois.

Não só tenho imaginado esses jogos; também tenho meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, uma manjedoura; são quatorze [são infinitos] as manjedouras, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo. Contudo, à força de se fatigar em pátios com uma cisterna e poeirentas galerias de pedra cinza, alcancei a rua e vi o templo dos Machados e o mar. Não entendi isso até que uma visão da noite me revelou que também são quatorze [são infinitos] os mares e os templos. Tudo existe muitas vezes, quatorze vezes, mas duas coisas há no mundo que parecem existir uma só vez: acima, o intrincado Sol; abaixo, Astérion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o Sol e a enorme casa, mas já não me recordo.

A cada nove anos entram na casa nove homens para que eu os liberte de todo mal. Ouço seus passos e sua voz no fundo das galerias de pedra e corro alegremente a procurá-los. A cerimônia dura poucos minutos. Um após outro caem sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem são, mas sei que um deles profetizou, na hora de sua morte, que algum dia chegaria o meu redentor. Desde então não me dói a solidão, porque sei que vive meu redentor e no fim se levantará sobre o pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá que me leve a um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor? pergunto-me. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com rosto de homem? Ou será como eu?

***

O sol da manhã reverberou na espada de bronze. Já não havia nenhum vestígio de sangue.

– Acreditarás, Ariadne? – disse Teseu –. O minotauro apenas se defendeu.

Conto de Jorge Luis Borges, tradução de Marcelo Bueno de Paula.

sábado, 29 de maio de 2010

Laço

.
O céu, qual teus braços,
ferido pelo meu amor,
de hematomas repleto
me culpa por ser quem sou.

De meu coração, silêncio.
Calam-se as almas, no céu
e aqui, até mesmo meu amor
se faz perdido em injúria.

Ainda que não me conheças,
teu coração o meu sabe,
e apesar da noite morta
algo santo em nós suporta.


 Imagem: Broken, de nenyu

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Lembrança

 .
Não lhe amo mais.
És como sombra,
virtude antiga, corrompida.
Tampouco a odeio:
És para mim vazia,
és outra.

Odeio tua memória,
tua lembrança,
as noites, os dias,
a xícara de café,
os nós dos dedos,
o perfume, o bilhete.

São para mim o diabo,
o inferno, belzebu,
são para mim anátema,
que caço, do qual fujo,
que escondo, mas admiro
em noites sem sonhos.

sábado, 15 de maio de 2010

Book

 .
Depois do ipad, surge um novo produto para promover meios portáteis de leitura:

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Mare

 .
So weak, so frail
So human in every aspect
Hands, arms, shoulders
Neck, chin, mouth
whishpers: "let me"
The night flows
The mare rides
And he is left
"alone"

terça-feira, 20 de abril de 2010

Lanark (resenha)

.
Lanark é um livro longo, complexo, mas de forma alguma cansativo. As mais de 600 páginas escorrem pelos dedos como areia, enquanto uma infinidade de imagens são conjuradas pelo autor, que não poupou referências em sua obra, que vão de Dante a Freud.


A história é dividida em quatro livros, na ordem 3,1,2 e 4, um interessante artifício do autor para prender a atenção (mas que também se revela importante para a compreensão geral a obra), que reúnem a vida do personagem principal, Lanark, que tem provavelmente muito em comum com o autor e, provavelmente, com o leitor.

O livro é uma salada de estilos que demonstra não apenas o talento do autor como, creio, serve de metáfora para os diferentes períodos e experiência da vida.

Lanark merece nota 5 e praticamente não tem pontos negativos, sendo uma leitura tanto enriquecedora quanto prazerosa.

 Alasdair Gray, o autor

domingo, 18 de abril de 2010

Sobrevivente (resenha)

 .
O autor de Clube da Luta e Cantiga de Ninar tem um estilo rápido, frenético, que leva o leitor a encarar a história em um ritmo vertiginoso. Ele geralmente usa personagens incomuns em ambientes bizarros, mas que podemos encontrar no dia-a-dia (e provavelmente encontramos, mas não notamos). Seus livros podem chocar pessoas mais sensíveis e surpreender que não está acostumado com a literatura ousada de Chuck.


Sobrevivente tem todas essas características, sendo ainda mais veloz que Cantiga de Ninar. O livro conta a história de Tender Branson, sobrevivente de um culto religioso americano que, logo no primeiro capítulo, sequestra um avião dentro do qual pretende se suicidar, esperando que os motores entrem em pane enquanto conta sua história para a caixa preta.

A história realmente prende a atenção, mas dá a sensação de não ser o melhor momento de Chuck. Ele não consegue causar tanta surpresa, nem chocar. Suas críticas, sempre presentes, nem sempre parecem ácidas o suficiente para o mundo anestesiado em que vivemos. Ainda assim, é uma leitura válida, divertida e que move o leitor a pensar sobre diversas coisas.

Chuck, o autor

sexta-feira, 26 de março de 2010

Rain

.
Hands lust into her thighs_
into secrets kept for long,
now told_
in the middle of the night.

Those are not my hands, though.
Mine hold pen and paper,
they drive words out of me,
war them off my heart.

As the rain falls outside I,
foolishly,
remeber.



trecho de desenho do *tonysandoval

sexta-feira, 5 de março de 2010

The making

.
She is made of wrists and shoulders,
of ankles, knees and cheeks.
She is made of moss and poison weeds.
She is made of words, worlds and tears.
She is all that I love and I hate,
built in a shape, so foul, so fair.