quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Literatura enquanto Arte da Falha

A literatura é a arte da falha. Claro, muitos outros títulos e metáforas podem ser usados para definir uma das mais amplas e presentes formas de arte, mas nunca ouvi ninguém tratá-la como " arte da falha", e por isso insisto nisso. O sucesso, o correto andamento das coisas, a normalidade, nada disso deve importar ao escritor ou ao leitor. Não interessa que Romeu e Julieta vivam felizes para sempre, que Joseph K. encerre o Processo ou que Montresor convença Usher a sair de férias. Não, na literatura apenas o anormal interessa, e esse anormal não está nunca no espectro positivo, não será nunca (ou quase nunca) o grande sucesso, a grande felicidade. O escritor parte de um problema, parte da falha - e muitas vezes não sai dela, ou o faz, apenas para voltar mais tarde. Ele é um estudioso do fracasso, do erro, enfim, da matéria do mundo, mas não estudo o porquê da vida ser assim, mas o porquê da vida não ser de outra forma.

Imagino que concordarão comigo que o escritor tem fascinação com a lenta e calculada destruição de seus personagens, mas discordarão quanto à necessidade do leitor de vislumbrar o mal do mundo na literatura. Dirão que o leitor quer um final feliz. E eu direi que, se ele quer, que tenha um final feliz, mas não na arte. Best sellers estão disponíveis justamente para oferecer aquilo que o leitor quer; eles são feitos para agradar. O artista de verdade não busca amigos: ele quer ofender, maltratar, enfiar todos os dedos nas feridas, nas próprias e nas dos leitores. O verdadeiro leitor busca o mesmo: quer se ver nos personagens, despido, humilhado, analisado, explicado. A literatura tem o poder de nos dizer quem somos, ainda que através da arte do embuste. Entendam, nada tenho contra a cartase, mas que ela exista como redenção consequente da revelação, não como exigência comercial. Que o artista coloque um sorriso na boca do leitor, mas que também molhe seu rosto com lágrimas...

Talvez como reflexo dessa atividade, talvez como mera coincidência, o autor em si costuma ser falho, no sentido que nós mesmos usamos... Borges viveu com a mãe não até a maturidade, mas até a velhice, e muitos crêem que ele jamais alcançou a maturidade. Poe, assim como Dostoiévsky, viveu em probreza e dificuldades, vítima dos seus próprios descontroles. Kafka, por mais que tentasse, não conseguiu fugir da sombra do pai terrível e de seus próprios problemas. A lista continua, e é certo que os grandes não foram tão grandes em suas vidas pessoais como o foram em suas obras. Ou o foram mas, sob o ponto de vista da sociedade atual (que não muda muito com o tempo), foram homens falhos. Me dirão: Shakespeare! García Marques! E eu concordarei que esses homens foram reconhecidos em seu próprio tempo e aproveitaram a glória de sua arte. Mas, notem que, ainda assim, seus personagens sofrem. O público do teatro Elizabetano exige que Hamlet complete sua vingança, mas Shakespeare não pode permitir que ele viva para comemorar. A tragédia! Que esses autores sejam excessão, que se deliciem com vitórias; seus personagens, não.

Então, no esforço de aceitar essas mal arrumadas linhas sem nenhum argumento pétreo, me perguntam:Por quê? Direi: Não sei. Mas creio que a falha é algo profundo, ancestral e arquetípico. Quem, afinal, não se sente, com variada frequência, um fracasso?

Ophelia, de Hamlet