quinta-feira, 10 de maio de 2012

Tia Julia e o Escrevinhador, de Mario Vargas Llosa


Conheci o livro através da coleção de Literatura Íbero-Americana da Folha (aliás, muito boa). A coleção oferece ao leitor brasileiro uma segunda-leitura de escritores consagrados da Península Ibérica e da América Latina, como Saramago e García Marquez. Tia Julia e o Escrevinhador, de Mario Vargas Llosa, foi o terceiro da coleção e, até agora, o que mais me agradou. O autor é peruano, tem 76 e recentemente recebeu o Nobel. 

O livro tem ares auto-biográficos, narrando a história do próprio autor (Varguitas, na casa dos 18 anos) estudando e trabalhando na cidade de Lima enquanto alimenta pretensões literárias. Eis que surgem os personagens secundários que roubam a cena: Tia Julia, divorciada balazaquiana que encantará Varguitas, e Pedro Camacho, o tal do escrevinhador, excêntrico autor de novelas boliviano contratado pela rádio onde trabalha o autor. 

A estrutura do livro é coisa de gênio: entre cada capítulo referente à história propriamente dita temos capítulos das novelas de Camacho. Esses capítulos terminam sempre no clímax, como contos interminados, e se ligam de forma magistral à história, explicando detalhes ou adiantando o que virá. 

Além disso, o humor é de primeira, sem ser literário demais, mas carregado de sutilezas. A escrita de Vargas Llosa, ao menos nesse livro, é bastante fluída, o que leva o leitor a devorar páginas e mais páginas, em busca dos acontecimentos (foi preciso da minha parte um pouco de disciplina para ler com calma, analisando os recursos que o autor utiliza). 

Esse livro, que mistura realidade e ficção, é um grande presente para a Literatura, ainda pequena mas cada vez maior, de Língua Portuguêsa/Hispânica (as considero irmãs) e uma compra com garantia de satisfação.
O Autor

P.S.: Existe um filme sobre o livro, com Keanu Reeves. Não vi, mas o IMDB dá nota 6. Deve valer à pena pela curiosidade.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Leviathan, de Scott Westerfeld

 

Europa, 1914. O Arquiduque Francisco Ferdinando é assassinado em Sarajevo. Esse é, como sabemos pelas aulas de história, o estopim da Primeira Grande Guerra. Assim o é também em Leviathan (2009), de Scott Westerfeld, primeiro livro de uma trilogia que também inclui Behemoth (2010) e Goliath (2011).

Príncipe Aleksandar, filho de Ferdinando, tem que fugir no meio da noite acompanhado apenas de quatro de seus súditos. Órfão, sem lar e se descobrindo peça central de uma guerra que ele não entende, o mundo parece não poder piorar para o rapaz. Enquanto isso, na Inglaterra, Derwyn Spark se disfarça de menino para poder entrar na Aeronáutica; consegue, e numa sequência de coincidências, acaba por embarcar no Leviathan do título, também sendo arrastada para a guerra que se inicia.

O mundo de Leviathan guarda muitas semelhanças com o nosso, com os países divididos entre os Aliados (Inglaterra, França e Rússia) e os Impérios Centrais (Alemanha, Império Austro-Húngaro e Império Otomano). Mas aí também surgem as diferenças, que tornam a história interessante: o mundo se divide entre Clankers e Darwinistas. Os Clankers, que equivaleriam aos Impérios Centrais, usam máquinas e robôs sofisticados, enquanto os Darwinistas utilizam animais geneticamente modificados, às vezes combinados com equipamentos mecânicos. Desse modo temos o grande Leviathan do título, um verdadeiro ecossistema que se concentra na forma de uma baleia movida a hidrogênio. Absurdo? Nem tanto: o livro fornece explicações para tudo que surge, desde as aberrações Darwinistas até os gigantescos tanques aracnídeos dos Clankers.

Derwyn pilotando um Huxley Darwinista e S.M. Bewulf alemão

O livro é um claro best-seller: o autor se utiliza de todos os truques existentes para prender a tenção do leitor. Quem está acostumado com o estilo não se surpreende uma única vez, e pode se sentir incomodado pelos abundantes clichês. A obra é para adolescentes, mas isso não é desculpa. Esses problemas, no entanto, não fazem o livro perder seu charme steampunk, e a história se seguraria mesmo que o autor não estivesse tão interessado em prender o público: o livro tem seus méritos, talvez o maior deles sendo a temática bem elaborada em torno da história da Primeira Guerra, combinando elementos ao mesmo tempo antiquados e futurísticos, num caldeirão mais de possibilidades que de acontecimentos reais. Quem sabe o livro não leve alguns dos seus jovens leitores a se interessar por História? Além disso, Leviathan conta ainda com as incríveis ilustrações de Keith Thompson, que ajudam a dar cor e forma ao mundo de Westerfeld.

Alek e seu Stormwalker

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Imortalidade

[Gustav] Fechner diz que a nossa consciência - o homem - está equipada de uma série de anseios, apetências , esperanças, temores, que não correspondem à duração de sua vida. Quando Dante diz: ne’l mezzo del cammin di nostra vita, faz-nos lembrar que as Escrituras nos recomendavam setenta anos de vida. Assim, depois de completar 35 anos, teve aquela visão. Nós, no curso de nossos setenta anos de vida (infelizmente já ultrapassei esse limite; já estou com 78), sentimos coisas que não têm sentido nesta vida. Fechner pensa no embrião, no corpo antes de sair do ventre da mãe. Naquele corpo há pernas que não servem para nada, braços, mãos, nada disso tem sentido; são coisas que só podem ter sentido numa vida ulterior. Devemos pensar que o mesmo acontece conosco, que estamos cheios de esperanças, de temores, de conjecturas, e não precisamos de nada disso para uma vida puramente mortal. Precisamos do que os animais têm, e eles podem prescindir de tudo isso, que pode ser usado depois, em outra vida mais plena. É um argumento a favor da imortalidade”.

Trecho de Borges oral & Sete noites, de Jorges Luis Borges.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

A Longas Eras de Arda

O Senhor dos Anéis não foi a primeira história escrita por J. R. R. Tolkien a se passar na Terra-Média. A maioria dos leitores conhece também O Hobbit, que narra as primeiras aventuras de Bilbo, tio de Frodo, e Gandalf, além dos anões comandados por Thorin Escudo-de-Carvalho. Mas além dO Hobbit houveram trabalhos anteriores que não foram publicados: esses textos diversos cumprem a função colossal de explicar os acontecimentos das Primeira e Segunda Eras, e ainda do que aconteceu antes.

 
Primeiras edições dO Senhor dos Anéis, com design feito pelo próprio Tolkien

O leitor que conhece apenas O Senhor dos Anéis pode estar um pouco confuso, então uma explicação é necessária: Os eventos dO Hobbit e dO Senhor dos Anéis acontecem durante a Terceira Era de Arda/Terra-Média. Antes disso houveram outras duas Eras: a primeira, envolvendo o início de tudo, com a saída e consequente retorno dos Elfos para a Terra Média, o surgimento dos homens e o combate contra Morgoth, de quem Sauron era apenas um servo. Após a queda de Morgoth há a fundação de Númenor, a ilha na qual viveram os ancestrais de Aragorn, assim como sua queda, perpetrada pelas maquinações de Sauron, o que ocorre na Segunda Era. Não me proponho a explicar os acontecimentos desses períodos, mas indico o que ler a quem estiver interessado, ainda nesse texto.

O Senhor dos Anéis contém, em seu terceiro volume (O Retorno do Rei, para quem não tem a versão única), um volumoso glossário explicando os eventos anteriores ao Senhor dos Anéis. Sua leitura não é necessária para compreender os eventos do livro, mas é um deleite para aqueles que se apaixonaram pela Terra-Média. Ainda assim, esse apêndice foi considerado insuficiente para explicar muita coisa, principalmente por expôr novas questões que Tolkien não se propôs a responder, ou não teve tempo de fazê-lo.

Entenda-se, Tolkien estava envolvido no trabalho de criação/construção da história de Arda desde muito cedo; parte de seus manuscritos data do seu período no exército, ainda durante a Primeira Grande Guerra. Ao longo da vida ele teve que harmozinar o trabalho acadêmico com a elaboração das narrativas que povoariam seu mundo fantástico. Centenas de páginas escritas, mais ou menos elaboradas, em prosa, poesia e mesmo em textos de caráter descritivo, tocando temas como geografia, história e filosofia. O amontoado homérico nunca foi editado por Tolkien, talvez porque ele ainda não considerasse a história devidamente terminada, e estava inseguro quanto a publicar histórias que ainda poderiam ser polidas ou alteradas. Morreu, em 1973, deixando duas Eras para serem explicadas.

Quem tomou a responsabilidade de publicar os trabalhos do pai foi seu filho, Christopher Tolkien, hoje com mais de 80 anos. O primeiro trabalho que editou e publicou foi O Silmarillion, em 1977, que narra acontecimentos anteriores à criação do mundo, indo até eventos posteriores à Terceira Era (isso é, posteriores aO Senhor dos Anéis). O nome do livro vem das Silmarils, pedras preciosas forjadas pelo maior atífice élfico dos dias antigos, Feänor, lider dos Noldor, pedras essas que foram roubados por Morgoth, o que levou a uma guerra de séculos entre elfos (e mais tarde homens) e o Senhor do Escuro. O livro reúne textos que Tolkien começou a escrever em 1925, até próximo de seus últimos dias, mas que tiveram que ser editados pelo filho, pois muitas partes se encontravam em estado pouco acabado. Christopher Tolkien, no entanto, tentou manter a interferência a um mínimo, apenas para auxiliar a compreensão do texto e mantê-lo de acordo com o que o público já conhecia em trabalhos anteriormente publicados.

Uma Silmaril: tesouro de valor inestimável tanto para os Noldor como para Morgoth

Em 1980 foram publicados os Contos Inacabados de Númenor e da Terra-Média, mais uma vez um livro composto pela união de textos incompletos deixados por Tolkien, mas dessa vez houveram várias diferenças. Enquanto O Silmarillion estava mais bem acabado e já existia, embora incompleto e precisando de edição, os Contos Inacabados são uma aglomeração de textos de estilos diferentes e sob temas diversos, que exigiram maior empenho editorial e contam com diversas notas, tanto aquelas deixadas por Tolkien como pelo editor (novamente, Christopher). As histórias do livro englobam, assim como O Silmarillion, as três Eras, explicando temas tão díspares como a geografia de Númenor e a organização do exército de Rohan. É certamente um trabalho para curiosos e amantes da obra de Tolkien, mas de modo algum necessário para qualquer um que gostou dO Senhor dos Anéis.

O Vala Ulmo se revela a Tuor

Por fim, houve a públicação dOs Filhos de Húrin, em 2007. Ao contrário dos trabalhos anteriores, de caráter mais ou menos enciclopédico, o livro é realmente uma narrativa, portanto bem mais próximo dos livros que Tolkien publicou em vida e mais atraente para o público geral. A história se passa da primeira era do mundo, durante a guerra entre Elfos e Morgoth, na qual os humanos (recém-chegados) acabam se envolvendo, em ambos os lados. Nesse mundo duro nasce Túrin, Filho de Húrin, grande guerreiro e amigo dos elfos. Capturado em batalha, Húrin desafia Morgoth, que o amaldiçoa e a toda sua família; a história acompanha seus filhos, Túrin e Niënor, da infância até o fim trágico, vivendo sob a constante sombra da maldição do Senhor do Escuro. É a história mais sombria e pesada escrita por Tolkien. Os primeiros rascunhos datam de 1914, tendo sido portanto iniciados muito antes dO Senhor dos Anéis, e durante os anos de elaboração foram escritos tanto em prosa como em poesia aliterada. A história, considerada por Tolkien uma das mais importantes de toda sua obra, já havia sido contada nO Silmarillion e nOs contos Inacabados, além de citada rapidamente nO Senhor dos Anéis, mas sem a grande quantidade de detalhes presentes agora. As ilustrações de Allan Lee complementam o texto bem acabado e trágico da vida dos filhos de Húrin.

Túrin assiste impotente ao saque de Nargothrond perpetrado pelo dragão de Morgoth, Glaurung

Esses não são, no entanto, todos os trabalhos publicados por Christopher Tolkien: existem também os doze volumes de The History of Middle-Earth, mas essa enciclopédia não é tão atrativa para leitores médios como as obras anteriormente citadas, sendo de maior interesse para os estudiosos e especialistas que se debruçam sobre a obra de Tolkien e estudam Arda com avidez. Outros livros que tratam mais de Tolkien do que de Arda, como suas cartas, também existem. Além disso tudo, ainda sabe-se da existência de mais material relacionado à Terra-Média que Tolkien deixou, e que poderá ser eventualmente publicado, mas não se sabe quando.