Este ano que está quase acabando foi atípico: tive que dar
aulas de Língua Portuguesa e Literatura para turmas do Ensino Médio (o que até então não fizera) e por isso tive
que me atualizar, lendo e relendo muita literatura brasileira, deixando de lado
Filosofia, Teologia e Política, além de alguns preconceitos. Foi um ano
produtivo, de descobertas e surpresas, e apesar da falta de tempo, consegui ler
bastante, embora apenas uma pequena parcela dos livros tenha se destacado. Decidi fazer
uma lista dos favoritos, e aí estão:
A profundidade dos sexos, de Fabrice Hadjadj
Fabrice Hadjadj é uma figurinha estranha: francês de
nascimento, judeu pelo sangue, com nome árabe, e católico em um meio cada vez
mais anti-cristão; era de se esperar que sua obra fosse tão cosmopolita quanto
ele, misturando referências numa salada agradável, mas desafiadora aos
paladares menos aventureiros.
O livro busca investigar o sexo em seus diferentes aspectos
de forma inovadora: a relação mística entre carne e espírito no que se refere
às diferenças entre os sexos e na comunhão entre os mesmos. Num mundo onde
características essenciais do sexo são negadas (sua fertilidade, sua dualidade,
seus riscos, mistérios e deslumbramentos) e recebemos respostas simplistas de
materialistas e ideólogos (quase todos à esquerda), a o livro é muito bem
vindo.
A intenção do autor não é ofender, mas fica claro que, num mundo onde desvios das normas sociais impostas pelo complexo academia-governo-mídia são vistos como crimes terríveis, mesmo as críticas sutis do livro a certas tendências em nossa sociedade podem ofender certos grupos (LGBT, pró-aborto, hedonistas, e obviamente os anti-religiosos ou anti-católicos). Portanto, se você pertence a algum desses grupos, prepare-se para uma leitura cativamente e desafiadora, mas possivelmente desconcertante e desconfortável.
A falha do livro, se é que se pode usar o termo, reside
justamente em algo que o autor não se propôs a fazer: explorar com real
profundidade a questão da carne no seu aspecto místico de acordo com a
ortodoxia. O autor aponta para essa necessidade, mas se reconhece incapaz de
saná-la. Teremos que esperar por alguém mais capaz para nos aprofundarmos na
questão, já que o livro se aproxima de um ensaio, embora tenha suas 250
páginas.
Por fim, tem-se uma certa dificuldade com a tradução: o
autor usa e abusa de trocadilhos intraduzíveis e de uma ironia que funciona bem
no francês, mas é simplesmente confusa em outras línguas. Ainda assim, o estilo
é agradável e a leitura, apesar de passar por grandes e complexos luminares do
pensamento ocidental, de Platão a Heidegger, é ainda assim prazerosa e
acessível.
Sagarana, de João Guimarães Rosa
Neste ano coloquei minhas leituras de Literatura brasileira
em ordem, e finalmente conheci a obra de Guimarães Rosa. Não sabia realmente o que esperar e me
surpreendi agradavelmente.
Guimarães Rosa a princípio parece ser mais um regionalista
na linha de autores um pouco anteriores (Graciliano Ramos, Rachel de Queirós,
Jorge Amado), mas depois de poucas páginas já se começa a perceber o primoroso
trato que ele tem com a palavra: ele mascara, revela, eleva, renova e expande a
palavra de forma surpreendente, recorrendo a arcaísmos, neologismos e ao uso
criativo do léxico sertanejo e sertanejo-inventado, de modo desnorteante e
elucidador. Até então não tinha me deparado com uma exploração tão profunda do
vocabulário em uma obra de arte (Joyce à parte). Isso, claro, pode tornar a
leitura um esforço, mas daqueles que valem à pena.
Outro ponto interessante desse livro de contos e novelas é a
exploração da relação do homem com o mistério da existência, não apenas dele
próprio mas também da complexa relação entre bem e mal na alma humana e não
experiência de vida. O livro tem um aprofundamento filosófico e mesmo místico
que com certeza escapa ao entendimento da maioria dos jovens que estão lendo o
livro para os vestibulares da Fuvest e da Unicamp, mas que é um tempero
especial para quem se interessa pelas tradições esotéricas de todas as
religiões.
No mais, o livro é, sim, uma leitura agradável. Além do
aprumo da forma e da temática, Guimarães Rosa é um excelente prosador, um
contador de histórias de primeira, e com certeza um artista que merecia
reconhecimento internacional e um posicionamento de destaque entre os grandes
escritores mundiais, e possivelmente o de melhor desta Terra de Vera Cruz.
Minha Vida de Menina, de Helena Morley
A princípio acreditei que a inclusão do livro no vestibular
da Fuvest fosse um esforço mais ideológico do que derivado do valor intrínseco
da obra. Afinal, é uma obra escrita por uma mulher (o que interessaria à
Academia, com sua tendência feminista cada vez mais militante) e um diário
(escapando das normais exigências das provas, de romance e poesia). Mas que
bela surpresa foi!
O livro é, de fato, um diário, escrito por Alice Dayrel Caldeira Brant sob o pseudônimo de Helena Morely, na época que ela era uma menina vivendo em Diamantina no fim do século XIX. Menina espevitada, observadora e com resposta para tudo, seu olhar ilumina as transformações radicais que o Brasil passou no período, com o fim da Escravidão, do Império, e a violenta República das Espadas. É, por isso só, um documento de valor histórico valiosíssimo, ainda se levarmos em conta que o texto foi editado (sem que possamos saber a extensão dessas edições).
A escrita é uma delícia, e a menina é um amor de pessoa. Além disso, encontramos diversas personagens interessantíssimas, com destaque especial para a D. Teodora, avó de Helena e uma pessoa adorável. O mundo é também cruel, e a menina relata episódios de racismo e violência tola, mas aponta também para um mundo mais simples e comunitário, com suas belezas hoje já perdidas, apagadas pelo movimento de atomização do indivíduo e destruição dos laços familiares.
Que saudade que o livro dá de coisas que não tivemos a oportunidade de ter!
A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós
Eça é o Ó. Como outros autores da época, foi influenciado
por todas aquelas tendências rançosas do final do século XIX: ateísmo, positivismo,
cientificismo, anti-clericalismo, socialismo... todos os ismos detestáveis que
ainda nos perturbam. Tudo isso fica claro principalmente na obra que a Fuvest
exige para 2019, A Relíquia, que é uma das leituras mais sofridas que fiz na
minha vida, de um anti-catolicismo datado e cansativo. Por isso mesmo a
inclusão de A Cidade e as Serras nesta lista que faço é relevante.
O livro trata da relação entre as novidades e modas das
grandes cidades (no livro representadas por Paris) e os prazeres simples da
vida no campo (as serras de Portugal). Isso por si só parece uma quebra com o
Realismo, quase sempre urbano, progressista, se contrapondo aos costumes
antiquados e à superstição do modo de vida campestre, onde todos ainda são
religiosos e desconfiados. A explicação vem da época da publicação: a obra é
póstuma, e Eça, no final de sua vida, já estava cansado das modinhas realistas que ajudou a
popularizar e começava a se dar conta de que ele mesmo era, no fundo,
português.
O resultado é um livro que contém uma prazerosa elevação dos
costumes tradicionais, do agrarianismo, da simplicidade, e todos aqueles demais
valores que ainda restavam do Arcadismo já desfalecido. Logo, é uma lufada de
ar fresco sobre esses ranços urbanistas dos séculos passados, que tanto
causaram sofrimento ao arrancar o homem de seu habitat natural e lançá-lo no
concreto, escravo de seus instintos desarraigados e adotados pela sociedade de consumo.
Claro que muita gente não chegará a essas conclusões lendo o
livro, preferindo as platitudes recomendadas pelos professores de cursinho, o
que provavelmente é uma boa ideia para aqueles que querem passar no vestibular.
Mas para quem não sofre mais com essas exigências, fica a oportunidade de
explorar esse lado de Eça que pouco é mencionado, lado esse que quase
exime sua obra, indubitavelmente primorosa, mas manchada por ideologias
caducas.
A idéias conservadoras, de João Pereira Coutinho
Qual a diferença entre um esquerdista e um conservador?
Vinte anos.
A piada acima, que vi pela primeira vez em inglês (onde o
termo que eu traduzi por esquerdista era “liberal”, que tem outro sentido em
português) se baseia no fato de que a marcha da esquerda nunca para, e que
posições que hoje são defendidas pelos conservadores eram, há vinte anos,
bandeiras dos progressistas. Basta comparar as propostas de Donald Trump hoje
com as do governo de Bill Clinton e perceber que eles têm mais em comum do que de
diferente, apesar do desespero da mídia toda vez que o atual presidente diz
algo geralmente inócuo, mas com a delicadeza de um elefante bêbado.
Um remédio contra a degradação aparentemente irreparável dos
ideais da direita pode estar neste livro de João Pereira Coutinho, que retoma os
Conservadorismos (sim, no plural) originais, em especial o de Edmund Burke, lembrando a
direita que o Conservadorismo como escola de pensamento surge em reação à
Revolução Francesa e está obviamente contra toda forma de revolução, inclusive
àquelas propostas pela direita reacionária. O Conservador, segundo Coutinho, é
um cético cuidadoso, até mesmo pessimista, que prefere cuidar do que há de bom
e mudar lentamente, sempre com um pé atrás. Segundo ele, é essa cautela que
falta aos conservadores de hoje, ora traidores que são esquerdistas em tudo
menos nome, ora engessados em costumes do passado que, na verdade, são
estranhos ao conservadorismo. Ou seja, o conservador não deve nem se render à
posição Revolucionária nem à posição Reacionária, sendo antes de tudo um
administrador do possível, navegando os mares da política cuidando que o navio
da civilização não naufrague.
Me convenceu? Não. Embora possa respeitar a posição dos
conservadores, olho à minha volta e vejo pouco a conservar, já que as vitórias
da esquerda foram, de fato, arrasadoras. Me posiciono, sim, com os
Reacionários, e me sinto em melhor companhia com Dávila e Chesterton do que com
Burke e Scruton. Mas vale muito à pena ler esse livro, para que se possa
criticar o conservadorismo sem recorrer a espantalhos, e mesmo verificar que há
muito de válido no pensamento deles.
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