segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Diálogo entre um Inspirado e um Raciocinador

Jean-Jacques Rousseau. Quem foi? Nascido em 1712, em Genebra, foi filósofo, romancista (foi precursor do romantismo), compositor musical, preceptor, entre outras coisas. Previu a Revolução Francesa e a inspirou, dedicou livros sobre uma possível sociedade ideal, justa, realmente democrática, sendo perseguido por isso.

Mestre.

Quase todos conhecem Rousseau pela frase "O homem nasce bom, a sociedade o corrompe" e pela idéia de "bom selvagem", mas isso é apenas um pequena parte de sua obra. Autor de trabalhos como O Contrato Social e Discurso Sobre a Origem e Fundamento da Desigualdade Entre os Homens , foi um dos pensadores mais influentes do século XVIII, talvez o mais significativo representante do Iluminismo.

Em sua obra Emílio, considerado por ele próprio seu mais importante trabalho, discorre sobre como seria a educação de um homem perfeito, uma educação de acordo com a natureza, que permitiria ao ser humano viver num mundo corrupto sem ser corrompido por ele. A educação se inicia desde o nascimento e vai até a idade adulta, sendo cada momento considerado importante, sempre levando em conta que a criança não é um futuro adulto e que deve ser considerada apenas como criança. A educação consiste antes em perder do que em ganhar tempo, uma vez que a natureza saberá como educar melhor que qualquer preceptor, e seu curso não deve ser interrompido por vaidades, preconceitos e intenções que fazem sentido apenas para os adultos que cercam a criança.

A minha impressão ao ler Rousseau é a de que ele busca devolver o homem a si mesmo, devolver a natureza ao ser humano e o ser humano à natureza e trazer Deus de volta à humanidade. Um serviço nobre que eu admiro.

O trecho abaixo, retirado do Emílio, está em uma parte muito específica do livro, A Profissão de Fé do Vigário Saboiano (texto completo aqui), que contém os princípios da Religião Natural que Rousseau defende.

Deixamos de lado toda a autoridade humana e, sem ela, não sou capaz de ver como um homem pode convencer outro ao pregar-lhe uma doutrina insensata. Façamos por um momento com que esses dois homens se enfrentem um ao outro e vejamos o que poderão dizer com aquela linguagem áspera comum aos dois partidos.

O Inspirado

A razão ensina-vos que o todo é maior do que a parte; eu, porém, ensino-vos da parte de Deus que a parte é maior que o todo.

O Raciocinador

E quem sois vós para ousar dizer-me que Deus se contradiz? E em quem acreditaria eu de preferência, nele que me ensina pela razão as verdades eternas, ou em vós que me anunciais de sua parte um absurdo?

O Inspirado

Em mim, pois minha instrução é mais positiva,e provar-vos-ei de modo invencível que é ele quem me envia.

O Raciocinador

Como? Provar-me-eis que é Deus que vos envia para depor contra ele? E de que gênero serão vossas provas para me convencerem de que é mais certo que Deus me fale por vossa boca do que pelo entendimento que me deu?

O Inspirado

O entendimento que vos deu? Homem pequeno e vão! Como se fôsseis o primeiro ímpio que se perde em sua razão corrompida pelo pecado!

O Raciocinador

Homem de Deus, tampouco seríeis o primeiro patife que oferece a sua arrogância como prova da sua missão.

O Inspirado

Qual! Os filósofos também insultam!

O Raciocinador

Às vezes, quando os santos dão-lhes o exemplo.

O Inspirado

Ah! Mas tenho direito de injuriar, pois falo da parte de Deus.

O Raciocinador

Seria bom que mostrásseis vossos títulos antes de usardes vossos privilégios.

O Inspirado

Meus títulos são autênticos, a terra e os céus deporão em meu favor. Acompanhai meus raciocínios, por favor.

O Raciocinador

Vossos raciocínios! estais brincando. Ensinar-me que minha razão me engana não é refutar o que ela me dirá em vosso favor? Aquele que pode recusar a razão deve convencer sem se servir dela. Pois suponhamos que ao raciocinar me tenhais convencido: como saberei se não é minha razão corrompida pelo pecado que me faz concordar com o que me dizeis? De resto, que prova, que demonstração podereis empregar que seja mais evidente do que o axioma que ela deve destruir? É igualmente crível que um bom silogismo é uma mentira e que a parte é maior do que o todo.

O Inspirado

Que diferença! Minhas provas não têm réplica; são de ordem sobrenatural.

O Raciocinador

Sobrenatural! Que significa essa palavra? Não a entendo.

O Inspirado

Mudanças na ordem da natureza, profecias, milagres, prodígios de toda espécie.

O Raciocinador

Prodígios! Milagres! Jamais vi nada disso.

O Inspirado

Outros viram em vosso lugar. Inúmeras testemunhas... o testemunho dos povos...

O Raciocinador

É de ordem sobrenatural o testemunho dos povos?

O Inspirado

Não. Mas, quando ele é unânime, é incontestável.

O Raciocinador

Nada há de mais incontestável do que os princípios da razão, e não se pode autorizar um absurdo como base no testemunho dos homens. Mais uma vez, vejamos as provas sobrenaturais, pois a atestação do gênero humano não é uma prova.

O Inspirado

Ó coração endurecido! A graça não vos fala!

O Raciocinador

Não é culpa minha, pois, segundo vós, é preciso já ter recebido a graça para saber pedi-la. Começai, pois, a falar-me em lugar dela.

O Inspirado

Ah! É o que estou fazendo, e não me escutais. Mas que dizeis das profecias?

O Raciocinador

Digo em primeiro lugar que não ouvi mais profecias do que vi milagres. Digo além disso que nenhuma profecia seria capaz de ter autoridade sobre mim.

O Inspirado

Servo do demônio! E por que as profecias não têm autoridade sobre vós?

O Raciocinador

Porque, para que tivessem, seriam necessárias três coisas cujo concurso é impossível, isto é, que eu tivesse sido testemunha da profecia, que fosse testemunha do acontecimento e que me fosse demonstrado que tal acontecimento não pôde ajustar-se fortuitamente com a profecia; pois, mesmo que ela seja mais precisa, mais clara, mais luminosa do que um axioma de geometria, já que a clareza de uma predição feita ao acaso não torna a sua realização impossível, essa realização, quando ocorre, nada prova rigorosamente em favor de quem a predisse.
Vede pois a que se reduzem vossas pretensas provas sobrenaturais, vossos milagres e vossas profecias. A crer em tudo isso com base na fé de outrem e a submeter à autoridade dos homens a autoridade de Deus que fala à minha razão. Se as verdades eternas que meu espírito concebe pudessem sofrer algum prejuízo, já não haveria para mim nenhuma espécie de certeza, e, longe de ter certeza de que me falais da parte de Deus, não teria nem mesmo certeza de que ele existe.

Quem conhece esse livro sabe bem que Rousseau parece respeitar filósofos e religiosos como o do diálogo mais ou menos da mesma maneira; nesse texto, no entanto, a balança claramente pende para o lado do Raciocinador. Para Rousseau, os sentimentos podem(os) enganar, a razão pode(mos) enganar, mas do julgamento da consciência ninguém escapa.

Esse post vai especialmente para o Otavio, que apóia esse blog. E também para o Gabriel, que às vezes me parece ter desistido de encontrar Deus antes de começar a procurá-lo no lugar onde isso é possível, dentro de si.

3 comentários:

Anônimo disse...

Bem profundo o_o'
aliás, é Gabriel da ON? :B

Anônimo disse...

sim, sou eu bee.

Feänor disse...

Rousseau... Um homem que, como meu amigo que faz filosofia me disse uma vez, todo mundo cita, mas ninguém de fato lê.

Interessante o texto... Mostra que o Rousseau é bem mais do que o "cara do bom selvagem". Eu pretendo me aprofundar nas obras dele quando tiver um tempo.