domingo, 19 de setembro de 2010

Navio Negreiro

O autor, Castro Alves

I

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.


II


Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...


III


Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!


IV


Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...


V


Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...


VI


Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Criação (Filme)

O filme Creation, que conta a história da criação do livro A Origem das Espécies, de Charles Darwin, pode ser encontra no youtube, completo e legendado neste link. O filme, na verdade, se centra nos conflitos que acompanharam Darwin durante os anos de elaboração do livro. Excelente produção, ótimas atuações e informação salpicada de fantasia, o que não é de forma alguma um demérito.

Darwin (Paul Bettany) e sua esposa Emma (Jennifer Connelly)  

terça-feira, 7 de setembro de 2010

A Caixa

Ah, algo importante: a ilustração desse post é de autoria da Jazz. Visite o deviantart dela, tem muita coisa boa lá.

Bem, é isso. Espero que goste do conto :)

* * *
“E os dias da minha vida foram como a crina do cavalo trançada pelos ventos do destino”

Me criei na Babilônia, como meu pai e seu pai antes dele. Minha mãe era de terra estranha, onde os homens se amam e reservam às mulheres pouco interesse. Soube que meu pai a resgatara deste atoleiro de perversão e deuses estranhos e a transportara em segredo ao nosso lar, eu já em seu ventre. Sou, na verdade, filho do deserto, mas ao nascer meus olhos se voltaram para o Portal de Ishtar (o atravessei muito antes de Sikander), e não chorei.

Meu pai era um abastado mercador, nascido sob as graças de Asaru, e no entanto me fiz crescer nas ruas por vontade própria e nelas aprendi mais que na escola à qual era obrigado a comparecer. Meu pai não se dignou a domar meu espírito, ele próprio tomado por um espírito audacioso (Certa vez ele matara um mercador que julgava o estar enganando; mais tarde, descobriu que o homem era honesto e matou todos os empregados e escravos deste mercador, para que o segredo não se espalhasse. Ele agia segundo o seu coração, que estava nas mãos dos deuses, cuja sabedoria não discutirei).

Muito aprendi com meu pai até que um punhal em uma noite de verão o ceifou em um beco à saída do templo de Marduk. Naquele mesmo beco vinguei meu pai, e verifiquei que o punhal do assassino era patrocinado por um homem imune ao Código. Corri ao lar, tomando tudo que a meu pai pertencera e, junto de minha mãe, abandonei a cidade que amei mas que nunca fora minha. Tinha treze anos e por treze noites dormimos no deserto até alcançar a terra de minha mãe. Seus pais estavam mortos, aparentemente pelas próprias mãos, e não herdamos sua casa. Não precisamos, três camelos trazíamos conosco e eles carregavam riquezas suficientes para comprar toda aquela cidade vil, repleta de homens que pensavam demais.

Naquela terra à beira do mar escolhi um lar para minha mãe que, à vista de nossa riqueza, foi logo cortejada por homens. Ela não se interessou por nenhum deles mas, em vista de que em terra estranha precisaríamos de um homem na casa, escolheu um forasteiro (que seu nome se perca na noite e em Arallu) de maneiras sutis e olhar misterioso, de idade avançada e que não a perturbaria na cozinha ou no quarto: O estrangeiro nunca tomara para si mulher, embora tivesse idade para ter netos (típico deste lugar, pensei), e me tomou por filho, sob seu nome e herança. Mudamo-nos para sua casa, distante das outras muito mais que o normal, sem escravos ou serviçais. O homem tinha dinheiro, mas também muitos gastos; conforme se passavam os meses vi se esvaírem através de seus dedos a nossa riqueza, e em seus negócios se perdiam anos de trabalho de meu pai. A cada mês enviava homens para todas as direções daquela terra infértil e recebia de volta esses homens, muitas semanas depois, exaustos de longas viagens e desprovidos de mercadoria alguma, salvo um eventual livro, um fragmento de tecido, um caco de cerâmica.

Isso muito me interessou, e tencionei descobrir o segredo do meu novo pai. Sondei seus olhos e palavras, em vão. Escondido nas sombras, como aprendi nas ruas da Babilônia, me instruí sobre o homem e suas maneiras. Seu quarto e seu escritório me eram de fácil acesso. Esgueirando-me pelos corredores mal cuidados e mal iluminados, sob sua cama (na qual minha mãe nunca se deitara) , por trás de colunas e paredes secretas, em seu armário, pude ouvi-lo com seus mensageiros, li suas cartas, seus livros, ouvi seus suspiros em sono profundo, e assim aprendi sobre a Caixa.

Antes minha curiosidade não me tivesse conduzido a isso. Mas a vontade dos deuses é inescrutável. Maldito seja o dia no qual aprendi sobre a Caixa. Sem nome ou história, ela era objeto de poder. O homem encontrara referência em um livro obscuro, e depois novamente na língua de um mercador (que ele ainda guarda em um pote), na tapeçaria de um persa, nos ventos da noite, que ele consultava com freqüência. Dizia, em sono profundo, que a caixa o tornaria poderoso. Dizia, maravilhas em seu interior aguardavam o sábio, o ousado. Mais aprendi em seu diário, mas não convém falar.

Em uma noite de lua cheia, sob o olhar desatento de Nana (como podem os deuses permitir tais coisas?), o homem sacrificou minha mãe através de uma incisão que começou em seu ventre e terminou no pescoço; em silêncio, observei, sem luto (não ouse julgar meu coração). O homem leu em suas entranhas a história da caixa, que lhe era explicada por uma sombra que ele chamava Sagulhassa sobre sua cabeça. Nas sombras ouvi e não interrompi.

Na manhã seguinte meu padrasto apareceu em meu quarto, fingindo surpresa, me alertando sobre o rapto de minha mãe. Juntos fingimos lágrimas, fingimos surpresa ao encontrarmos o corpo dilacerado em uma praia, fingimos luto no enterro. Guardei em mim o segredo, e aos poucos me estreitei laços com o homem, cuidando de suas finanças e auxiliando no que podia. Depois de um mês ele decidiu viajar, e eu conhecia o motivo. Esperava que ele me permitisse partir com ele, mas fui designado como guardião da casa e da riqueza. Presenteei-lhe a honraria com um punhal no peito e tomei seu lugar na viagem.

Segui os desígnios do ventre de minha mãe, e partirmos para a morada noturna do sol, através de colinas e, depois, montanhas. Animais selvagens nos acompanhavam em nossa viagem, mas não se aproximavam. Chacais, hienas, ouvíamos seus sons à noite, entre outros, que na época não conhecia; os homens da caravana falavam de espíritos, gênios. Não lhes dei ouvidos e silenciei os mais barulhentos. Mas, a cada dia que nos aproximávamos mais do destino, as dificuldades aumentavam: fiéis não conseguiam dedicar palavras a seus deuses, sonhos incômodos não os permitiam dormir, água e pão perdiam o gosto. Um a um meus homens desapareciam. Certa manhã, encontrei-me só no deserto, com um camelo, um cantil e um bilhete. Continuei em direção ao oeste.

Sob o sol do meio dia avistei no horizonte uma jóia branca que, brilhando sob o sol e tanto quanto Utu, não pude admirar como queria. Ao anoitecer, alcancei a cidade, e novamente não pude contemplar suas formas, devido às sombras. Não fui recebido a não ser pelo vento, pelo eco e pelo cheiro de fezes e urina, de chacais e hienas, por toda a parte. Contei seus pilares por uma hora, e não fui capaz de terminar. Não encontrei um copo que não fosse de ouro, não encontrei uma alma com que partilhar o vinho. Decidi que era uma cidade morta, e não dos mortos. No entanto, ela me era familiar, como se a conhecesse de um sonho, ou de outra vida. Na área mais central encontrei um templo, não como os da minha terra ou como os da de minha mãe. Suas paredes eram limpas, sem arte de qualquer tipo a não ser uma inscrição em língua estranha que não fui capaz de ler. Sem medo, adentrei.

Não haviam cômodos no templo, apenas um amplo salão. Em cada parede, estantes e livros. No centro, uma fonte, ainda com água; em seu interior, rãs, sapos, insetos. Examinei os tomos e encontrei volumes em várias línguas: grego, acádio, persa, elamita e outras que não conhecia ou sequer pareciam possíveis. Em um livro encadernado em couro vermelho aprendi que “o solo da Floresta Negra é tão absurdamente negro que o risco de se cair em um buraco acreditando-se estar sobre solo firme é bastante comum” e, em outro, adornado com dentes e com cheiro de urina li que “Em Antípodi é costume do pai, em caso de nascimento de gêmeos, devorar o filho mais novo evitando-se, assim, discussões sobre primogenitura ”. Encontrei a inscrição da entrada do templo na capa de um grande livro encadernado em ouro e adornado com jóias em cada página - suas páginas eram de prata maciça e seu conteúdo escrito em ouro; seu conteúdo era misterioso para mim. Deitei-me e, com o livro sob minha cabeça, adormeci.

Sonhei.

Caminhava no deserto. Era noite e a lua de prata e, sob meus pés, a areia de ouro reluzia. Uma figura se aproximava mais a cada instante. A alguns metros a luz da lua a se revelara sendo uma mulher bela, vestida com os trajes de minha terra, em suas mãos carregava uma bolsa e sobre ela uma inscrição, a mesma da entrada do templo. Seus olhos verdes repletos de ambição, enquanto me encaravam, se abriram em êxtase, suas pupilas se dilataram e então se apagaram. Ela caiu por terra, enquanto um homem, negro como a noite, se escondia em um beco da Babilônia. Abri o saco, e nele encontrei uma adaga, com a qual abri o ventre da mulher. Em seu bojo, a escuridão.

Acordei e me virei vendo, ainda sob o torpor do despertar, uma cobra morta, com marcas de mordida; em direção à porta, pegadas de chacal. Suava e tremia. Tentei decifrar o sonho e fui incapaz. Procurei pelo chacal, para perscrutar em suas entranhas meu destino, mas estava só. Ao anoitecer notei, na fronteira entre a cidade e o deserto, uma coluna fumaça. A segui, e, minutos depois chegava a uma pequena casa, diferente das demais da cidade, pouco mais que uma cabana. Entrei, e encontrei um homem sentado em uma cadeira; sem parecer surpresa se levantou e me olhou nos olhos. Ele me abraçou, sem proferir palavra, e se foi, montado em um cavalo. Em meu bolso, encontrei uma chave; levantei meus olhos, vi a caixa sobre um pedestal de madeira e me aproximei, sem tocá-la.

Ela era negra, como ébano, como a noite, como a chave. Retirei o artefato do meu bolso e examinei suas formas novamente. Era uma chave como qualquer outra, mas, negra como a caixa, parecia roubar a luz à sua volta. Por algum motivo, não imaginava aquele pedaço de metal (seria metal?) capaz de abrir qualquer coisa, como se não fosse uma chave, mas algo que se disfarçava nessa forma, como uma faca querendo ser espada ou um camelo querendo ser rei. Introduzi a chave na fechadura e a virei tantas vezes quanto pude, sem resultado. A cada vez que virava a chave na fechadura, ouvia um som, mas a caixa permanecia fechada. Tentei virar a chave mais algumas vezes, em várias direções. O esforço me tomou alguns minutos, mas o processo de destrancamento da caixa me iludia. Faltava algo.

Atentei para uma inscrição na caixa e notei que era a mesma do templo. A caixa, notei melhor, era muito parecida com o templo. Observei seus detalhes e toquei-lhe em cada ponto, buscando uma solução para aquele mistério, sem resultado. Procurei solução nas paredes à minha volta, mas também não encontrei nada que pudesse me ajudar. O guardião já deveria estar muito distante no deserto e eu não sabia onde estava meu camelo.

Depois de várias horas de decepção e inútil contemplação agarrei a caixa bruscamente e a levantei com ambas as mãos, com facilidade, e a balancei. Nenhum som. Sentindo-me enganado, lancei, com todas as forças, o artefato contra o chão, e ouvi o som de madeira se lascando ao mesmo tempo em que ouvi o som de madeira batendo ao chão e se rompendo. Ouvi, estranhamente, o som de aço sendo rasgado, de carne sendo cortada, do fluxo de um rio sendo rompido . Ouvi os gritos da minha mãe, quando nasci, e ouvi os meus. Ouvi ainda muitos outros sons, no que parecia ser a eternidade e um instante, enquanto a sala se iluminava cada vez mais, e tremia, como se o chão fosse se abrir sob minhas pernas. À porta, que vi pela última vez, estava o chacal, que olhava para mim e, posso jurar, haviam lágrimas em seus olhos. A luz tomou conta de tudo e, com ambas as mãos, tapava os ouvidos, inutilmente. Fechei os olhos e tudo se tornou silêncio. Quando os abri, o mundo não estava mais lá.

* * *

Por dentro, a caixa se parece ainda mais com o templo. Cheguei a essa conclusão depois de tocar cada centímetro de seu interior, ao longo dos anos. Não pela visão, não. É muito escuro aqui dentro. Não sei ao certo há quanto tempo estou aqui. Não defini nenhum método de medição dos dias, mas não me importo. Aqui os dias, meses, anos, fluem, como se não existissem. Arranquei e comi meus olhos há algum tempo atrás. Sei que foi há alguns anos, pois não sinto mais dor, nem me lembro do gosto. Não o fiz por fome, não sinto fome ou sede. Achei apenas um desperdício não fazê-lo. Dentro desse espaço não encontrei segredo ou poder. Sei que estou só, mas não acredito que será para sempre. Alguém, nos anos que virão, descobrirá em um livro uma menção a este lugar, e iniciará uma busca. Nos livros e nas estrelas perscrutará mistérios, iniciará uma busca, encontrará a casa e a chave, vislumbrará a caixa. Disso não duvido. Não duvido também que tentará abri-la. Se suceder, estarei livre. Se não, ao menos terei companhia.